Gurlitt: os piratas de arte da era nazista

Gurlitt: Status Report / Martin-Gropius-Bau, Berlim/ encerrada em janeiro de 2019 /(exposição também realizada no Israel Museum, de 24 de setembro de 2019 a 25 janeiro de 2020)
Adoro unir arte e história, pois esse casamento nos faz entender a natureza humana em termos mais profundos. Sempre que esbarro com alguma mostra relacionando os dois temas, aproveito a oportunidade para “ver” um pouco mais além dos livros de história.
Na minha última ida a Berlim para visitar minha filha, me deparei com a exposição “Gurlitt: Status Report”no museu Martin-Gropius-Bau, encerrada em janeiro de 2019. Aliás, este é um dos meus museus preferidos na cidade pois além de possuir uma esplendorosa arquitetura e ser cercado de história, a instituição acolhe sempre mostras excepcionais.
A exposição está focada nas obras do acervo de Cornelius Gurlitt, morto em 2014 e na história de seu pai, Hildebrand Gurlitt. A história veio à tona em 2013 quando o Ministério Público da Baviera tornou pública a apreensão das obras de arte nas residências de Cornelius em Munique e Salzburgo, obras estas integrantes da coleção herdada de seu pai.
A descoberta de mais de 1.500 obras, incluindo peças de Claude Monet, Paul Cézanne, Ernst Ludwig Kirchner, Otto Dix e Gustave Courbet, no valor de centenas de milhões de euros, causou uma verdadeira ebulição nacional e internacional, tornando-se o maior achado artístico de origem suspeita da era do pós-guerra. Cornelius Gurlitt havia deixado as obras, em testamento, para o Kunstmuseum Bern, na Suíça o que foi contestado por membros da família Gurlitt. Um tribunal de Munique se pronunciou contra a alegação e as obras passaram a integrar o acervo do museu, sob condições de devolução de peças identificadas como roubadas.
A exposição faz parte de um programa de mostras itinerantes que passaram por Bonn, Berna e Berlim, já finalizadas, mas que vão continuar a explorar a história por trás da extensa coleção de arte da família Gurlitt, cujos primos Hildebrand e Wolfgang foram importantes negociantes de arte para os nazistas. O Lentos Kunstmuseum, museu austríaco na cidade de Linz, está inclusive preparando uma exibição focada em Wolfgang Gurlitt, que se tornou o primeiro diretor do referido museu. A instituição pesquisa há 20 anos a procedência das obras de sua coleção. Com essas diversas mostras, os organizadores esperam que a exposição pública dessas obras leve a reivindicações de restituição por parte das vítimas de perseguição nazista.
A importância da exposição no Martin-Gropius-Baunão se resume a nos brindar com a possibilidade de ver obras totalmente desconhecidas do público e imaginadas perdidas. Ela nos oferta a chance de conhecer outras perspectivas relacionadas ao triste período em que a Europa ficou sob o domínio nazista.
Uma delas é contar a história da arte moderna, que foi proscrita pelos nazistas sob a “ação artística degenerada” de 1937 e 1938, e que levou ao confisco de mais de 23.000 pinturas, esculturas e gravuras de galerias públicas por toda a Alemanha. Muitas das obras foram vendidas no exterior para levantar recursos para o regime nazista.
O outro aspecto importante refere-se à pilhagem pelos nazistas de obras de arte de colecionadores privados, a maioria dos quais de origem judaica, cujas histórias nos são desconhecidas.
E é aqui que a figura de Hildebrand Gurlitt(1895 – 1956) surge de forma definitiva, como um dos mais atuantes comerciantes de arte do Terceiro Reich, trabalhando diretamente em nome do líder nazista Adolf Hitler. Ele e seu primo Wolfgang apesar de terem um relacionamento repleto de desacordos, tinham em comum terem ascendência judia e serem comerciantes de arte para o regime. Ambos compraram obras saqueadas dos judeus perseguidos ou que foram vendidas a preços reduzidos por aqueles que tentavam fugir da Alemanha nazista. E, incrivelmente, ambos conseguiram se reabilitar após a 2ª. Guerra Mundial.
Depois da guerra, Hildebrand Gurlitt conseguiu voltar à sua carreira como diretor de uma galeria em Düsseldorf. Quando interrogado pelas autoridades americanas em 1945, ele defendeu que só havia comprado trabalho oferecido a ele voluntariamente e que ele não tinha nada a ver com os agentes nazistas envolvidos na expropriação de coleções de indivíduos judeus.
Hildebrand morreu em 1961. Em suas cartas e memórias, que podem ser vistas na exposição, não há indícios de que ele tenha se arrependido de seus atos durante o período nazista e nem mesmo depois.
Ao lado das obras expostas tem-se uma breve descrição de sua provável procedência, na maior parte ainda sem esclarecimento definitivo. Hildebrand Gurlitt teria adquirido as obras de proprietários individuais e outras diretamente do Ministério da Propaganda, entre os itens confiscados como arte “degenerada”.
Além da oportunidade de poder ver pinturas, gravuras e esculturas que eram consideradas perdidas até o momento, o que mais me atraiu foram as histórias das pessoas que estão por trás de cada obra, todas vítimas de Hildebrand e do regime nazista, com seus rostos ausentes dos tradicionais livros de história.
E talvez essa seja uma questão relevante trazida por essas exposições: falar sobre quem eram os proprietários das obras e o destino deles e de suas famílias, expondo a extensão das relações nocivas à sociedade a partir de governos autoritários e ditadores. Jogar luz nessas histórias é talvez um dos caminhos para se chegar à procedência dessas obras de maneira mais rápida.
Ao longo do artigo e no seu final registro algumas dessas histórias ligadas às obras identificadas na coleção Gurlitt.
A arte como ferramenta de propaganda
Para nos situar no contexto em que atuou Hildebrand Gurlitt, os organizadores da mostra forneceram algumas informações sobre a política de arte na Alemanha nazista, que teve um papel chave na política geral do Terceiro Reich.
Como uma efetiva ferramenta de propaganda, o governo nazista instrumentalizou a arte de forma a representar para a sociedade a reinvindicação de poder do regime totalitarista. Foram criados, sob a égide de Joseph Goebbels, o Ministério da Propaganda e a Câmara de Cultura do Reich, que deram forma à Câmara das Artes Plásticas em novembro de 1933.
Um corpo regulatório foi estruturado para o chamado “Alinhamento” – controle e coordenação de uma vida cultural nacional-socialista unificada -, e a Câmara teve por atribuição promover a “Arte Germânica” que enriqueceria os valores da “raça superior” e os ideais nacionalistas, além de prevenir a “patologia degenerativa” nas artes. Todos os artistas, editores, galeristas e comerciantes de arte eram obrigados à associar-se à referida Câmara. Expulsão ou não-admissão tinham como consequência o banimento profissional e a perda de trabalho. Os primeiros expurgos foram direcionados aos oponentes políticos e aos não-arianos. Campanhas de “limpeza” eliminaram aqueles que supostamente produziam arte em desacordo com os preceitos ideológicos do nazismo. O regime do Terceiro Reich se reservou o direito de controlar inteiramente o setor cultural e de definir o que se qualificaria como arte.
Entre 1937 e 1938, cerca de 20 mil obras de 1.400 artistas foram retiradas de mais de 100 museus alemães, tornando-os finalmente “limpos” de movimentos culturais como Expressionismo, Abstracionismo, Dadaísmo, Cubismo, Fauvismo, Impressionismo e Bauhaus, assim como de trabalho de artistas de origem judaica.
Uma comissão especial foi criada para classificar as obras de arte “moralmente corruptas”, que deveriam ser vendidas somente para compradores em cidades fora da Alemanha. Em 1938, Hidelbrand Gurlitt apresentou ao Ministério da Propaganda uma solicitação para integrar o grupo responsável pela venda da “arte degenerada”. Durante o tempo em que trabalhou para a Comissão, ele teria se apropriado de um total de 3.879 itens, a maioria gravuras. Quantas dessas obras fazem parte do acervo encontrado recentemente, ainda não foi totalmente esclarecido. Pesquisadores estimam que cerca de 500 obras teriam pertencido a museus alemães. Em 30 de junho de 1941, o governo nazista declarou oficialmente encerrada a campanha de expurgo da arte degenerada.
Pesquisando um pouco mais sobre o tema, fiquei sabendo que, após 1945, finda a guerra, a Lei de Confisco não foi revogada e continua ativa até os dias de hoje. A Alemanha, ao longo dos anos, vem se esforçando para reduzir os prejuízos causados pelo nazismo, mas segundo especialistas, anular os efeitos da lei poderia trazer novos problemas ao mercado de artes, tendo em vista que muitas das obras “degeneradas” já foram comercializadas ao longo dos anos após o fim da guerra. No caso de herdeiros de judeus que tiveram obras confiscadas, existe uma base legal mais favorável a recuperá-las, mas em relação aos museus públicos alemães, isso seria bastante complicado.
A formação do acervo de Gurlitt e algumas histórias
Os especialistas avaliam que o acervo construído por Gurlitt aponta para um negociante de arte que estaria muito mais interessado em acompanhar o mercado de arte em constante mudança do que em conceitos curatoriais. Isso explica a presença de certos artistas, por exemplo, a grande quantidade de obras dos impressionistas franceses no seu acervo que, mesmo considerados trabalhos contra os ideais de arte para os nazistas, eram muito procurados no mercado de arte alemão.




A pintura de Claude Monet “Pont de Waterloo” (1903) tem uma história, no mínimo, duvidosa. Ela foi encontrada atrás de uma estante na casa de Cornelius Gurlitt em Salzburgo. Estava embrulhada em jornais e com uma foto da tela com uma anotação atrás feita por Marie Gurlitt ao seu filho, Hildebrand, com data de 1938:
“Caro Hildebrand
Eu estou feliz em confirmar que esta pintura fotografada no verso foi comprada por seu pai para mim há muitos anos e que nós a demos a você em seu casamento em 1923.
Sua mãe (Marie Gurlitt) -Dresden 14/3/1938”
Por que ela esperaria 15 anos após o casamento para escrever a nota? Como Gurlitt mentiu extensivamente sobre a origem de sua coleção de arte em várias ocasiões, muito provavelmente esta nota de sua mãe seria uma fraude e não há provas que corroborem a proveniência.


Paris foi um importante centro do comércio de arte confiscada ou adquirida inescrupulosamente. Em 30 de junho de 1940, uma semana depois da capitulação francesa, Adolf Hitler ordenou a “salvaguarda” de obras de arte em mãos públicas e privadas. Numerosos depósitos com bens culturais recolhidos foram colocados sob a supervisão das forças de ocupação. Obras de arte e mobília de apartamentos inteiros pertencentes a judeus franceses foram apreendidos.
Estima-se que mais de 100 vagões de trem saíram de Paris em direção à Alemanha com um total de mais 22.000 lotes de obras de artes, obras estas catalogadas, dentre as quais muitas selecionadas para as coleções privadas de Göring e de Hilter.
Vale notar que por trás da ação de expurgar a arte degenerada, Hitler e Göring, ambos grandes apreciadores de arte, tinham o desejo de criar um grande museu em Linz, integrado pelas obras roubadas de museus, galeristas e proprietários judeus ricos dos lugares conquistados pelo nazismo.
Apesar de não estar diretamente envolvido nas ações de apreensão de bens pelo estado nazista, Hildebrand Gurlitt estava negociando nos mercados de arte francês, belga e holandês em novembro de 1940. Aqui também as vítimas do regime nazista foram forçadas a vender suas posses, o que manteve esses mercados aquecidos sob a ocupação alemã. Altos funcionários nazistas disputavam com museus, comerciantes e colecionadores alemães por obras notáveis, lucrando com taxas de câmbio favoráveis e acordos comerciais coercitivos.
Mais uma vez, Hildebrand se beneficiou de suas boas conexões. Ele podia viajar livremente nos territórios ocupados, levantar moeda estrangeira e obter os documentos necessários para levar os trabalhos para fora do país. Em Paris, ele contava com uma rede cuidadosamente tecida integrada por comerciantes, especialistas e intermediários, entre eles Theo Hermsen Jr., André Shoeller, Jean Lenthal e Raphaël Gerard. Entre maio de 1941 e outubro de 1944, Hildebrand Gurlitt vendeu pelo menos 300 obras de arte originárias principalmente da França ocupada, para a “Comissão Especial de Linz”.
Os contatos que ele fizera com os museus renanos como um dos traficantes designados pela “Comissão para a Exploração da Arte Degenerada” também se mostraram lucrativos. Só em outubro de 1941, ele vendeu várias obras francesas para o Museu Wallraf-Richartz, em Colônia. Esses acordos autorizados podem ser rastreados por meio das licenças oficiais de exportação. Mas Hildebrand Gurlitt também aumentou seu próprio estoque de arte, e essas transações são muito mais difíceis de reconstruir a partir dos registros fragmentados por ele mantidos.
A história da relação de Hildebrand Gurlitt com Jean Lenthal, um judeu de Viena que se estabeleceu em Paris, é cercada de inconsistências e ações escusas. Nos registros encontrados no acervo, Gurlitt teria adquirido 42 obras de Lenthal em 1942. No entanto, não há descrições detalhadas dessas obras, o que coloca em dúvida a sua existência.
Durante a ocupação nazista na França, Jean Lenthal acabou sendo deportado para Auschwitz em 1944. No entanto, por ser um talentoso desenhista, foi transferido para o campo de concentração de Sachsenhausen para integrar um grupo da Operaçãp Berhard, que forjava dinheiro britânico para financiar ações de inteligência alemãs. Entre os poucos sobreviventes do Holocausto, Jean Lenthal retornou a Paris após a guerra e restabeleceu contato com Gurlitt. A correspondência entre eles, encontrada no acervo, mostra que os registros dos seus negócios não são uma fonte confiável de informações e comprova que as vendas de 1942 foram uma fraude. Lenthal teria falsificado os recibos para obras nunca negociadas para possibilitar que Hildebrand Gurlitt obtivesse uma licença de exportação.

Foto Angela Nogueira

Foto Angela Nogueira

Foto Angela Nogueira

Hildebrand Gurlitt também se interessou por obras de artistas do pós-impressionismo, entre eles Georges Seurat e Paul Signac. A descoberta do acervo de Gurlitt trouxe à tona uma outra figura que teve um papel importante na formação da sua rede parisiense: o especialista e negociante de arte André Schoeller(1879–1955). Mais de 140 opiniões de especialistas e certificados por ele assinados para confirmar a autenticidade das obras de arte foram encontrados entre os documentos do acervo de Gurlitt.

No entanto, como por exemplo no desenho “Promeneuse”, de Georges Seurat, não fica totalmente claro se Schoeller somente apreciou as obras ou se também esteve envolvido ativamente em sua venda. Depois da guerra, Schoeller foi condenado a pagar uma multa substancial por enriquecimento sem justificativa, mas foi inocentado das acusações de colaboração por fornecer evidência confiável de ter sido ativo na Resistência.


O pintor berlinense Max Liebermann foi um dos mais respeitados e famosos artistas alemães. Presidente da Academia Prussiana de Arte por um longo período, tinha grande influência no meio artístico e possuía uma extensa coleção de arte, principalmente dos impressionistas franceses, os quais admirava. Suas obras não foram consideradas “degeneradas”, mas como era judeu, foi excluído de todos os museus alemães. Isolado pelo anti-semitismo, faleceu em 1935 e não vivenciou os efeitos terríveis da comissão de expurgo. As mais valiosas pinturas de Liebermann foram enviadas em segurança para a Suíça, sendo que seu acervo ficou sob os cuidados de sua esposa. Com dificuldades financeiras, ela teve de vender obras da coleção, e acabou se suicidando ao ser transferida para um campo de concentração. Após a sua morte, a gestapo confiscou os bens do apartamento do casal. Não se conseguiu ainda esclarecer se as obras pertencentes à família estão entre as 70 gravuras encontradas na coleção Gurlitt.

Pesquisas de proveniência resultaram na devolução da pintura “Riders on the Beach”de Max Liebermann, também encontrada no acervo de Gurlitt. Os descendentes de David Friedmann, dono de uma fábrica de açúcar em Breslau, na Polonia, assassinado em Auschwitz em 1942, tomaram posse da obra em maio de 2015.

Kathe Kollwitz, uma importante artista de Berlin, tornou-se em 1919 a primeira mulher a ser nomeada professora na Academia Prussiana de Belas Artes, mas foi demitida em 1933 por causa de suas convicções socialistas e ações pacifistas. Seu trabalho abordou os males sociais e as realidades da vida das mulheres contemporâneas. A bela escultura Pietà (1938) deu voz à sua dor pela morte de seu filho Peter na Primeira Guerra Mundial. Uma cópia ampliada da escultura está instalada no Memorial Central da República Federal da Alemanha para as Vítimas de Guerra e Ditadura, em Berlim.

Provavelmente confiscada de museu alemão, mas ainda não teve a procedência esclarecida. Adquirida por Gurlitt do Ministério da Propaganda em 20 de maio de 1940

Provavelmente confiscada de museu alemão, mas ainda não teve a procedência esclarecida. Adquirida por Gurlitt do Ministério da Propaganda em 20 de maio de 1940
Käthe Kollwitz está entre os artistas que fundaram a“Berliner Secession”em 1898, uma associação artística alternativa à atuação conservadora da entidade administrada pelo Estado. O grupo desenvolveu obras com abordagens modernas, especialmente o impressionismo e o expressionismo inicial. Entre os artistas que moldaram o perfil da associação também estavam Edvard Munch, Lovis Corinth, Max Slevogt, Emil Nolde, e Max Liebermann (1º. presidente da Secessão).


Essas aquarelas são do artista alemão George Grosz(1893-1959) e foram adquiridas diretamente do artista, em 1925, pela Galeria de Arte de Mannheim, fundada em 1909, importante museu que acolheu a vanguarda alemã das primeiras décadas do séc. XX, incorporando também obras de Otto Dix e Max Beckmamm. Em 1933, o diretor do museu foi afastado e no ano seguinte, mais de 100 obras consideradas “degeneradas” foram confiscadas pelo Ministério da Propaganda, do qual, em 1941, Hildebrand Gurlitt comprou as referidas obras.
Um dos movimentos artísticos que mais aprecio é o Expressionismo alemão que surgiu na cidade de Dresden logo no início do séc. XX. A coleção apreendida de Gurlitt inclui um enorme número de desenhos e gravuras dos mais importantes artistas expressionistas alemães.
Fritz Bleyl, Erich Heckel, (1883-1970) Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) e Karl Schmidt-Rottluff (1897-1977), que estudavam arquitetura na Universidade Técnica de Dresden, fundaram o grupo de artistas chamado Die Brückeem 1905, tornando a cidade de Dresden o berço do Expressionismo. Esses artistas desenvolveram coletivamente um novo conceito de pintura que tinha como principal meio de expressão, o livre tratamento da forma e da cor. Como uma reação à sociedade repleta de tabus morais, essa corrente apresentava uma nova imagem da humanidade e sofreu incompreensão e rejeição públicas.


Em 1919, após o fim da guerra, uma segunda geração de expressionistas em torno de Otto Dix e Conrad Felixmüller fundou o Gruppe Sezession. Pela primeira vez, em Dresden, a arte moderna encontrou reconhecimento oficial: a Academia de Arte nomeou o pintor austríaco Oskar Kokoschka como professor, o mais jovem na história da instituição. Diretores de várias galerias adquiriram obras de artistas de vanguarda e até mesmo os apresentaram para as Bienais de Veneza de 1922 e 1930 como representantes da arte alemã.



Em junho de 1925, Hildebrand Gurlitt tornou-se diretor do König Albert Museum em Zwickau, onde desenvolveu um amplo programa de exposições de arte contemporânea e eventos correlatos, introduzindo o público ao Modernismo. Ali ele não só apresentava suas recentes aquisições, mas também empréstimos de artistas, museus de Dresden, galeristas e colecionadores particulares, entre eles Fritz Salo Glaser. A visão moderna de Hildebrand o tornou impopular entre as forças reacionárias e nacionalistas e, apesar do amplo apoio de colegas e de uma intervenção da Associação Alemã de Museus, seu contrato não foi renovado e terminou em 30 de março de 1930.

A história de Fritz Salo Glaser(1876-1956) também é interessante. Advogado que vivia em Dresden, ele era um colecionador de arte e apaixonado pelas obras da vanguarda alemã, em especial o Gruppe Sezession. Sua casa era aberta a artistas e escritores, e entre os convidados estava o jovem Hilderbrand Gurlitt, também admirador dos expressionistas alemães.
Em 1933, por sua origem judaica, Glaser foi expulso da associação de advogados e não pode mais exercer sua profissão. Para sobreviver, se viu obrigado a vender itens de sua coleção de arte. Ao final da guerra, tendo escapado à deportação para o campo de concentração de Theresienstadt, volta a exercer sua profissão de advogado em Dresden.
Em 1947, ao representar um grupo de ex-juízes nazistas e ter sucesso na causa, ele perde sua condição de “vítima do fascismo” e é denunciado como “defensor dos esforços neofascistas”. As pesquisas do acervo de Gurlitt identificaram trabalhos como tendo pertencido à coleção de Glaser, como a aquarela de Wilhelm Lachnit, “Girl at a Table”. No entanto, ainda não está claro quando e sob quais circunstâncias a obra entrou na posse de Gurlitt.


Não pude deixar de me extasiar em frente deste desenho a lápis de cera de Kirchner, de uma simplicidade de traços e de efeito poderoso. Hildebrand Gurlitt adquiriu o desenho para o museu que dirigia em Zwickau e em meados da década de 1930, a obra foi confiscada. Em 1940 Gurlitt, aproveitando-se de sua posição junto à Comissão de confisco, comprou a obra que nunca mais deixou sua coleção.

Uma história surpreendente é a da artista Cornelia Gurlitt, uma rara exceção entre os grupos de artistas expressionistas, que eram predominantemente integrados por homens. Irmã mais velha de Hildebrand, Cornelia passou a Primeira Guerra Mundial trabalhando como enfermeira de campo em Vilnius, capital da Lituânia. Durante este período, artisticamente intenso, ela captura em seus trabalhos a atmosfera multicultural da cidade, incluindo cenas da vida cotidiana no bairro judeu. Pouco depois de retornar da Frente Oriental, Cornelia mudou-se para Berlim na esperança de ganhar a vida como artista. Sofrendo de depressão, ela cometeu suicídio em 1919, aos 29 anos de idade.


Antes de sua morte, ela nomeou seu irmão Hildebrand como seu executor, que manteve seus trabalhos guardados em segredo. Fora de vista do circuito da arte, seu nome caiu em quase obscuridade, até que a descoberta da herança do seu sobrinho trouxe à luz 138 obras desconhecidas, datadas de 1914 a 1919.


Até ser definitivamente estabelecida, a política cultural nazista envolveu alguns debates ideológicos sobre o caráter da “arte alemã”. Desde o início, os expressionistas foram execrados por discriminação racial e política, e identificados como “artistas degenerados”. O ministro da Propaganda do Reich, Joseph Goebbels, defendeu inicialmente um expressionismo “nórdico alemão” capitaneado por artistas como Ernst Barlach, Edvard Munch ou Emil Nolde, mas no verão de 1935, Hitler deixou clara sua posição. Em seu discurso no comício de Nuremberg, ele condenou abertamente o expressionismo e a arte moderna.



Quando foram expostas pela primeira vez em Berlim em 1892, as obras do artista norueguês Edvard Munch(1863-1944) chocaram o público burguês por abordar temas como erotismo e morte, luto, solidão e esperança. Posteriormente, Munch foi cooptado por ideólogos que buscavam promover ideias sobre a supremacia nórdica e germânica e, foi celebrado por Goebbels, em 1933, como “um herdeiro da natureza nórdica”. Quatro anos depois, no entanto, cerca de 80 de seus trabalhos foram enquadrados como “degenerados” e apreendidos dos museus alemães.
Da mesma forma, o escultor Ernst Barlach(1870-1938), até meados da década de 1920, era apreciado e identificado como a nova arte alemã, orgulhosa de suas raízes góticas do Norte. Suas esculturas e desenhos eram exibidas com frequência no museu dirigido por Hildebrand Gurlitt em Zwickau. Com a nova política nazista, suas obras passam a ser identificadas como “degeneradas”. Em 1937, cerca de 700 obras de Barlach foram confiscadas, sendo que Gurlitt conseguiu adquirir um número considerável de desenhos.



Cornelius Gurlitt nunca trabalhou e vendeu partes da coleção herdada de seu pai para manter suas despesas. Em 2010, ele foi preso em um trem quando retornava de uma viagem à Suíça para vender algumas das obras da coleção. Um oficial de alfândega alemão o deteve por estar em posse de uma quantidade de dinheiro superior ao limite permitido entre fronteiras. Sob suspeita de estar negociando arte ilegalmente sem pagar impostos, tornou-se alvo de investigações pelas autoridades fiscais que acabaram conduzindo à descoberta do acervo secreto.
No início de 2014, negociações estavam sendo conduzidas no sentido de uma cooperação entre Cornelius e a força tarefa do governo, para promover o retorno de peças roubadas aos seus donos de direito. No entanto, o colecionador eremita veio a falecer em maio do mesmo ano. O tribunal de Munique decidiu que o testamento de Cornelius deveria ser cumprido e as obras transferidas para o Kunstmuseum Bern, na Suíça, com a condição de que, as obras identificadas como roubadas deveriam ser devolvidas aos herdeiros de seus donos originais.
A Alemanha criou uma força-tarefa internacional sobre arte saqueada que até o momento conseguiu rastrear os verdadeiros proprietários de poucas obras. O governo prometeu manter o financiamento da investigação. O projeto pode ser acompanhado pelo banco de dados da German Lost Art Foundation.
Histórias como essas ainda me espantam, pois mesmo Hildebrand Gurlitt sendo considerado o vilão de toda essa história, Cornelius não se mostrou nada melhor do que o pai, sendo no mínimo moralmente ambíguo.
Também é surpreendente tomar consciência do quão pouco foi feito pelas autoridades envolvidas nos rearranjos do pós-guerra e o quão ineficientes os governos foram em rastrear obras de arte ilegalmente comercializadas durante o período do Terceiro Reich.
São muitas as questões que nos veem à mente: como foi possível que um acervo deste porte permanecesse “secreto” por tantos anos? Quantas obras desse acervo foram negociadas ilicitamente mesmo após o fim da guerra? Que auto-crítica o mundo da arte deveria estar fazendo?
Olhar para essas obras expostas com olhos puramente estéticos é muito pouco quando vemos as inúmeras questões morais, éticas e políticas que estão por trás desse período histórico. Não podemos ignorar ainda a evidência de um crime: uma família inteira que se aproveitou para lucrar com a impotência de um enorme número de pessoas diante dos horrores praticados pelo regime nazista e, que aparentemente, nunca se arrependeu nem procurou corrigir os erros do passado.
Algumas histórias por trás das obras
A exposição era bastante extensa e registrei algumas das obras e suas histórias que me chamaram a atenção e vou aqui compartilhá-las.

Consideremos, por exemplo, a obra “Portrait de Femme” de Jean-Louis Forain. Uma anotação atrás do quadro remete a um leilão de obras pertencentes a um colecionador parisiense, ocorrido no Hotel Savoy de Nice. O amante das artes anônimo seria o proeminente advogado e notário Armand Dorville (1875-1941), conhecido também pelo seu gosto excepcional e patrono das artes. Ele fazia parte do conselho do Museu de Artes Decorativas de Paris e havia deixado para o referido museu, em testamente de 1938, um legado em obras de arte. Em junho de 1940, com a invasão alemã na França, o colecionador judeu procurou refúgio em seu castelo na Dordonha, onde veio a falecer em 1941.
O governo de Vichy confiscou sua propriedade e sua vasta coleção de arte, leiloada no final de junho de 1942 em Nice em 450 lotes, entre os quais estavam pinturas de Pierre Bonnard, Thomas Couture, Félix Vallotton e Auguste Renoir, assim como dois retratos femininos de Jean-Louis Forain. Como e quando foram parar nas mãos de Gurlitt, ainda não foi esclarecido. A verdade é que nenhum esforço teria sido feito para transferir suas posses para os membros da família que ainda estavam vivos. No fim, como o de muitos outros, quase toda a sua família seria deportada e assassinada em 1944.

Outro exemplo é “Portrait de jeune femme assise”, pintura a óleo de Thomas Couture (1850–1855) que pertenceu a George Mandel (1885-1944), um dos mais influentes políticos da 3ª. República. Como Ministro do Interior, ele foi contra o armistício com a Alemanha nazista e tornou-se um dos líderes da resistência francesa. Mandel ficou preso de 1940 a 1944, quando membros de uma milícia pró-alemã o executaram na floresta de Fontainebleau.
Em 1954, sua companheira, a atriz Béatrice Bretty falou de uma pintura de uma mulher, que teria um pequeno buraco na tela e que desapareceu do apartamento de Mandel em Paris após sua prisão. Examinando a obra encontrada entre o acervo de Gurlitt, os restauradores detectaram esse buraco, identificando-o como a pintura mencionada por Béatrice.

Henri Hinrichsen, um importante editor de música clássica e grande patrono das artes, viu-se obrigado a vender obras de sua coleção de arte para suportar as altas taxas impostas aos judeus. Gurlitt teria adquirido duas pinturas e dois desenhos de sua coleção, entre eles, “Playing the Piano” de Spitzweg. Sua esposa Martha morreu na Bélgica depois de ter sido negada uma infusão de insulina porque ela era judia, e Henri foi preso pela Gestapo em 13 de setembro de 1942, deportado para Auschwitz, onde foi morto na câmara de gás imediatamente após sua chegada.
Depois da guerra, seus descendentes sobreviventes desejavam recuperar o desenho Spitzweg, o qual tinha valor sentimental para a família. Gurlitt e sua esposa negaram veementemente a posse do referido desenho e afirmaram que ele teria sido destruído no incêndio de sua casa em Dresden. A família de Hinrichsen nunca desistiu de recuperar a obra.

Desenhos em grafiti, Adolph Menzel. Foto Angela Nogueira.
Albert Martin Wolffsonera um conceituado advogado e patrono das artes em Hamburgo. Ele havia reunido uma coleção de trinta e seis desenhos de Adolph von Menzel (1815 a 1905), que cobria uma parede de sua casa, como podia ser vista em uma fotografia de família.
Após sua morte, os valiosos desenhos foram passados para seus filhos, Ernst Julius Wolffson e Elsa Helene Cohen. A família, apesar de protestante, foi estigmatizada como judia pelas leis raciais de Nuremberg de 1935 e foi vítima da perseguição nazista. Elsa Helene acabou fugindo com a família de seu filho para os EUA em 1941 e, imagina-se que a renda da venda dos desenhos tenha sido a fonte de financiamento para a fuga.
Gurlitt, conhecedor do valor que esses desenhos tinham para museus, adquiriu um total de 23 deles e, em 1939, ele os expôs na sua galeria de Hamburgo e os colocou a venda. Os livros contábeis mostram que ele pagou um preço bem baixo pelas peças que foram vendidas a museus e colecionadores particulares, rendendo-lhe um bom lucro.
Ao final da guerra, como fez em relação a outras inúmeras obras, Gurlitt negou o conhecimento do paradeiro das obras da coleção de Wolffson. O desenho “Interior of a Gothic Church” (o segundo da área superior da foto acima), encontrado entre as obras apreendidas na casa de Gurlitt, foi restituído aos herdeiros de Elsa Helene Cohen em setembro de 2017.
Para saber mais:
Banco de dados da German Lost Art Foundation: http://www.lostart.de/
Ensaio escrito por Hildebrand Gurlitt em 1955:
- https://www.spiegel.de/international/germany/hildebrand-gurlitt-1950s-essay-about-his-history-with-art-a-934072.html
- http://art-crime.blogspot.com/2013/11/hildebrand-cornelius-gurlitt-art_18.html
Vídeo: https://www.bundeskunsthalle.de/en/exhibitions/gurlitt-status-report-gropius-bau.html